Todo os Estados nascem de um crime –
aqui entendido como um ato que viola a moral comum – e se legitima através da
criação de um “mito das origens”, onde indivíduos entendidos como “criminosos”,
ou pelo menos como pessoas moralmente questionáveis – vale dizer que como
moral, compreendemos aqui a ideia de bem comum – tornam-se heróis nacionais.
Dessa forma, todos os governos mantêm em
sua base os ossos e o sangue de vítimas históricas, pois o processo de
constituição de uma sociedade passa inevitavelmente pelo conflito. A
colonização, o neocolonialismo, a guerra ao terror, as ditaduras, etc. são
exemplos históricos de como sistemas políticos buscam se legitimar através da
violência objetiva, ou seja, de uma forma de violência que tem objetivos, nesse
caso poderíamos simplificar esses objetivos como a manutenção do “status quo”.
Tal fato nos leva a uma outra dimensão
do debate, se vivemos num mundo onde experimentamos um era “pós-ideológica” –
onde não há mais espaço para ideologias políticas e consequentemente para o
debate, pois a biopolítica se resume hoje apenas na administração da vida em sociedade
– temos portanto uma sociedade onde a política não desperta um sentimento de “pathos”.
Esse triunfo da sociedade liberal resultou numa maximização da valorização do “eu”
(indivíduo) onde esse hedonismo consequentemente resulta numa visão de mundo
onde a violação do Outro (indivíduo) é injustificável. Porém, se transformamos
a violência que atinge o outro em uma missão “sagrada” – como a causa do bem
contra o mal – temos ai uma legitimação moral para a violação do outro. Motivos
étnicos e religiosos são então instrumentalizados para servirem como “tijolos”
na construção de interesses político-econômicos. E o “medo” age nesse contexto
esvaziado de “pathos” como aglutinador em torno de um mesmo objetivo.
A causa do bem contra o mal nos remete
diretamente a ideia das religiões, pois para que exista o bem deve existir o
mal, mas o que é o mal?
Nessa linha de raciocínio o mal seria
aquele que age diferente, que acredita em um deus diferente, que tem uma moral
diferente. Em resumo o cristão vê o islâmico como mal, o islâmico vê o budista como
mal, o conservador vê o liberal como mal, o liberal vê o comunista como mal, o
comunista vê o religioso como mal, etc. evidenciado então um círculo vicioso
infinito. Dentro desse círculo está a ideia de que existe para todo o bem uma
ideia de mal, essa fronteira que separa contrapartes sociais é na verdade uma
forma de se legitimar a violência contra o outro. Portanto o outro não é um dos
nossos e nós nos vemos como civilizados, resta ao outro ser bárbaro.
Um exemplo engraçado da instrumentalização das ideias religiosas está em Israel, lá cerca de 70% da população se declara como atéia e essa mesma população (mais
de 80%) acredita no argumento de que Israel tem um direito divino sobre a
terra. O argumento religioso age como mito
fundador da sociedade, ajudando a esconder os crimes do Estado Israelense. Portanto a alteridade é minimizada, sob as brumas
dos objetivos político-econômicos.
Difícil traçar uma solução para isso,
pois tais conflitos são hoje pandemias generalizadas, onde eles ocorrem em cada
região do mundo de forma diferente, pois a maior característica do modelo
capitalista é justamente ser adaptável a todos os contextos – o capitalismo tem
como característica destotalizar o sentindo, não sendo global no nível do
sentindo, pois não há uma civilização capitalista, a globalização tem como
mérito justamente demonstrar que o capitalismo pode se adaptar a qualquer situação.
Em suma diagnosticar uma solução é uma tarefa impossível, talvez seja possível
apontar estratégias que permitam traçar um melhor caminho para as sociedades
humanas, nos baseando no que Kant chamou de “Imperativo universal”. Devemos
elaborar imperativos que delineiem formas de se agir na relação entre homem e
homem e homem e natureza que sejam universais – claro que isso pode levar há
uma forma de centralização da imagem do homem, deixando-se de ver sua
pluralidade, mas é um risco que devemos correr. Outro aspecto dessa mudança é
pararmos de pensar que é possível arrumar o carro em movimento, o sistema
capitalista não é passível de ser reformado visando uma melhoria das condições
da relações de posse e trabalho – cerne da desigualdade – devemos pensar em um
modelo alternativo que promova como principal não o lucro hedonista mais sim o
crescimento das condições de bem estar coletivas. O progresso da ciência não deve
se pautar na maximização dos lucros para os conglomerados, mas sim na resolução
de problemas e questões sociais, econômicas, técnicas, teóricas, etc. A
religião deve parar de se colocar enquanto índice de moral de uma sociedade e
passar a agir como instância de conforto do “eu” – talvez isso signifique o fim
das religiões institucionalizadas.
Bem, esse são apontamentos feitos numa
tarde pós o café onde se digere além de alimentos notícias da barbárie humana nos
quatro cantos do mundo, barbáries que são diretas e indiretas. Talvez elas não
sejam plausíveis, mas como diz aquela parede pichada na França de 1968, “Soyons
realistes, demandons l´impossible!”.