terça-feira, 27 de outubro de 2015

O cansaço, a crise da alteridade e a África

Há de se reconhecer uma certa solidão do Homem em nossos tempos, tal sentimento de exílio se relaciona a “morte” – simbólica e prática? – das utopias pós 1989. O triunfo da visão mecanicista baseada na práxis sobre o sonho – utópico? – de uma comunidade comum resultou em uma “sociedade do cansaço”. O homem contemporâneo está imerso em um esgotamento excessivo que em última instância torna-se violento, pois nega a ação coletiva real – ficamos presos em nossa individualidade/coletiva virtual – aniquilando se assim a proximidade.
Um dos ensinamentos do “deus em carne” Cristo foi o “amar ao próximo”, contudo a modernidade comprova o que já havia alertado Nietzsche tempos atrás de que o verdadeiro evangelho morreu na cruz. Ainda sobre Nietzsche, o cansaço e a sociedade moderna – baseada como Hannah Arendt afirma no “labor” – podemos pensar na “pedagogia” proposta pelo filosofo alemão que valoriza o “ver”. Segundo o mesmo, a capacidade de “ver” se reflete na contemplação, ação essa banalizada na "sociedade do cansaço"o que  resulta numa incapacidade de conhecer o outro e o mundo - já que conhecer é se aprofundar nas coisas – tendo como consequência uma sociedade doente no que tange a alteridade.
Dito isso podemos mergulhar um pouco no continente africano, já que nossa incapacidade de reconhecer o outro e portanto de nos reconhecermos – no melhor estilo Caetano Velosos em sua música “O quereres” – reflete diretamente em nossa “manca” identidade nacional e na reprodução cotidiana do racismo. Muidinga e Tuahir – personagens de Mia Couto no livro “Terra Sonâmbula – evidenciam em suas vidas o peso de uma História opressora marcada pelo colonialismo, esse por sua vez, gêneses do mundo moderno calcado na exploração da força de trabalho e consequentemente do cansaço.
         Essa sociedade que em sua “hiperatividade” gera o cansaço ocasiona também em uma alienação do passado e numa abreviação do futuro que torna-se um presente contínuo. Nesse presente que não passa, tudo torna-se suspenso e fugaz devido a necessidade constante de satisfação do "eu". Em tempos assim os homens que se preocupam com a relação entre tempo e sociedade dormem acompanhados por pesadelos kafkianos, pois como metaforicamente demonstra o mesmo Mia Couto em sua alegoria sobre a suspensão do tempo pelo conflito armado em Moçambique, o distanciamento entre o passado (o velho Tuahir) e o futuro (o jovem Muidinga) do presente ocasiona no caos da guerra.

       Em suma, em tempos de individualização alienante onde o perigo de esquecermos do outro torna-se tão pungente, lembro-me de meu grande amigo Fernando Mandinga – da Guiné Bissau – cuja a oralidade foi de fundamental importância em minha formação enquanto brasileiro – consciente de nossa matriz africana – e de “intelectual” crítico dessa “sociedade do cansaço”.

Um comentário:

  1. Havia um tempo que esperava um novo texto seu. Cá está, com uma linguagem clara e direta, a sociedade do cansaço em Mia Couto! Obrigada, amigo, por compartilhar suas reflexões sempre provocadoras de reflexão... Fico aqui, com o Mia e seu texto, sonambulando por esta terra de guerra.

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