quinta-feira, 17 de julho de 2014

Reflexão sobre a barbárie

Todo os Estados nascem de um crime – aqui entendido como um ato que viola a moral comum – e se legitima através da criação de um “mito das origens”, onde indivíduos entendidos como “criminosos”, ou pelo menos como pessoas moralmente questionáveis – vale dizer que como moral, compreendemos aqui a ideia de bem comum – tornam-se heróis nacionais.
Dessa forma, todos os governos mantêm em sua base os ossos e o sangue de vítimas históricas, pois o processo de constituição de uma sociedade passa inevitavelmente pelo conflito. A colonização, o neocolonialismo, a guerra ao terror, as ditaduras, etc. são exemplos históricos de como sistemas políticos buscam se legitimar através da violência objetiva, ou seja, de uma forma de violência que tem objetivos, nesse caso poderíamos simplificar esses objetivos como a manutenção do “status quo”.
Tal fato nos leva a uma outra dimensão do debate, se vivemos num mundo onde experimentamos um era “pós-ideológica” – onde não há mais espaço para ideologias políticas e consequentemente para o debate, pois a biopolítica se resume hoje apenas na administração da vida em sociedade – temos portanto uma sociedade onde a política não desperta um sentimento de “pathos”. Esse triunfo da sociedade liberal resultou numa maximização da valorização do “eu” (indivíduo) onde esse hedonismo consequentemente resulta numa visão de mundo onde a violação do Outro (indivíduo) é injustificável. Porém, se transformamos a violência que atinge o outro em uma missão “sagrada” – como a causa do bem contra o mal – temos ai uma legitimação moral para a violação do outro. Motivos étnicos e religiosos são então instrumentalizados para servirem como “tijolos” na construção de interesses político-econômicos. E o “medo” age nesse contexto esvaziado de “pathos” como aglutinador em torno de um mesmo objetivo.
A causa do bem contra o mal nos remete diretamente a ideia das religiões, pois para que exista o bem deve existir o mal, mas o que é o mal?
Nessa linha de raciocínio o mal seria aquele que age diferente, que acredita em um deus diferente, que tem uma moral diferente. Em resumo o cristão vê o islâmico como mal, o islâmico vê o budista como mal, o conservador vê o liberal como mal, o liberal vê o comunista como mal, o comunista vê o religioso como mal, etc. evidenciado então um círculo vicioso infinito. Dentro desse círculo está a ideia de que existe para todo o bem uma ideia de mal, essa fronteira que separa contrapartes sociais é na verdade uma forma de se legitimar a violência contra o outro. Portanto o outro não é um dos nossos e nós nos vemos como civilizados, resta ao outro ser bárbaro.
Um exemplo engraçado da instrumentalização das ideias religiosas está em Israel, lá cerca de 70% da população se declara como atéia e essa mesma população (mais de 80%) acredita no argumento de que Israel tem um direito divino sobre a terra. O argumento religioso age como mito fundador da sociedade, ajudando a esconder os crimes do Estado Israelense. Portanto a alteridade é minimizada, sob as brumas dos objetivos político-econômicos.
Difícil traçar uma solução para isso, pois tais conflitos são hoje pandemias generalizadas, onde eles ocorrem em cada região do mundo de forma diferente, pois a maior característica do modelo capitalista é justamente ser adaptável a todos os contextos – o capitalismo tem como característica destotalizar o sentindo, não sendo global no nível do sentindo, pois não há uma civilização capitalista, a globalização tem como mérito justamente demonstrar que o capitalismo pode se adaptar a qualquer situação.
Em suma diagnosticar uma solução é uma tarefa impossível, talvez seja possível apontar estratégias que permitam traçar um melhor caminho para as sociedades humanas, nos baseando no que Kant chamou de “Imperativo universal”. Devemos elaborar imperativos que delineiem formas de se agir na relação entre homem e homem e homem e natureza que sejam universais – claro que isso pode levar há uma forma de centralização da imagem do homem, deixando-se de ver sua pluralidade, mas é um risco que devemos correr. Outro aspecto dessa mudança é pararmos de pensar que é possível arrumar o carro em movimento, o sistema capitalista não é passível de ser reformado visando uma melhoria das condições da relações de posse e trabalho – cerne da desigualdade – devemos pensar em um modelo alternativo que promova como principal não o lucro hedonista mais sim o crescimento das condições de bem estar coletivas. O progresso da ciência não deve se pautar na maximização dos lucros para os conglomerados, mas sim na resolução de problemas e questões sociais, econômicas, técnicas, teóricas, etc. A religião deve parar de se colocar enquanto índice de moral de uma sociedade e passar a agir como instância de conforto do “eu” – talvez isso signifique o fim das religiões institucionalizadas.

Bem, esse são apontamentos feitos numa tarde pós o café onde se digere além de alimentos notícias da barbárie humana nos quatro cantos do mundo, barbáries que são diretas e indiretas. Talvez elas não sejam plausíveis, mas como diz aquela parede pichada na França de 1968, “Soyons realistes, demandons l´impossible!”.

terça-feira, 24 de junho de 2014

Breve reflexão sobre a violência

Existem violências no mundo que passam despercebidas pelos olhares mais sensíveis, violências essas que ocorrem como decorrência de uma estrutura econômica/política/social baseada em relações de mercado. Estamos todos inseridos numa  lógica onde o  “ser” tem menos valor do que a “coisa”, a não ser que seu corpo – ou mente – possa ser de alguma forma valorizados (seja na prostituição, no esporte ou no campo científico gerando patentes). Logo a “coisa’ – que é uma propriedade privada – ganha relevância frente ao "ser", para além disso, a mesma ganha importância política e social – além da importância econômica inerente a ela.
Vivemos num mundo mediado pelas “coisas”, onde a posse e a manutenção dessa posse tornam-se fatores importantes da vida. Politicamente as “coisas” ou melhor a distribuição de capital e das “coisas” são elementos importantes na “Real Politik”. Uma vez que o ter é mediado pelo acesso ao capital e tal fato se insere dentro de um contexto de desigualdade, onde o cenário político está sob controle de forças conectadas as elites dominantes, que por extensão de seu poder econômico controlam também o cenário político. Portanto a política é também uma forma de se manter – conservadorismo – a distribuição de capital e “coisas”fluindo na mesma direção.
Socialmente, as “coisas” ganham importância na medida em que demonstram “quem nós somos”, o “ter” um celular não se relaciona apenas a possibilidade de se falar com alguém, mas sim ao “status” inerente ao ter um celular de última geração. Como essa lógica está presente em todos os ramos do processo de circulação de mercadorias, encontramos uma sociedade onde a noção de cidadania perde seu valor frente a noção de “ser” consumidor.
Percebemos que este dois aspectos servem para manter as engrenagens da economia em funcionamento, tanto no processo de conservação das engrenagens (aspecto político) quanto no processo de renovação e circulação das “coisas” através da relevância social imbuída ao “ter” – aqui vale lembrar que as “coisas” mantêm uma característica de serem temporalmente validadas, o que gera uma corrida constante pela substituição da “coisa” velha pela “coisa” atualizada.
E para que tudo isso funcione como um relógio, o Estado deve garantir através da violência – não somente física – a continuidade da lógica que rege a sociedade.
Se como violência concebermos as ações que ferem o “ser”, automaticamente teremos uma expansão dentro do horizonte do que compreendemos por violência. Dessa forma a violência se tornaria também a falta de acesso à educação, saúde, saneamento básico, etc. Vale lembrar que em última instância a falta desses e de outros serviços ocasionam inclusive na morte biológica. Seja pela doença ou pela criminalidade na qual muitos excluídos são “levados” a adotarem como estratégia de sobrevivência.
Enfim, podemos dizer que há uma violência direta visível que é tanto aplicada pelo Estado como também imposto aos cidadãos através da criminalidade, como também uma violência indireta – subjetiva – usada como forma de se manter o “status quo”. A diferença entre as duas pode ser percebida pelo fragmento abaixo extraído da obra de Mark Twain intitulada de “Um ianque na corte do Rei Artur”.

“Um cemitério poderia conter os caixões preenchidos pelo breve Terror diante do qual todos fomos tão diligentemente ensinados a tremer e lamentar, mas a França inteira dificilmente poderia conter os caixões preenchidos pelo Terror real e mais antigo, aquele indizivelmente terrível e amargo, que nenhum de nós foi ensinado a reconhecer em sua vastidão e lamentar da forma que merece.”

segunda-feira, 16 de junho de 2014

A mentalidade coletiva

A origem do preconceito racial/social/ de gênero, etc. está ligada a construção de nossa sociedade, nesse sentido o preconceito pode ser visto como um “ethos” coletivo perpassado de geração para geração através de rituais, símbolos, instituições, tradições e tudo mais que compõe a cultura de um povo.
A lógica inerente ao nosso sistema representativo democrático sempre foi a manutenção do poder político pelas oligarquias, inicialmente latifundiárias, posteriormente com o desenvolvimento técnico e industrial de nossa economia, os proprietários passaram a dividir o espaço público da política com os industriais liberais.
Numa estrutura materialista como a existente hoje em todo o globo -  deve-se ressaltar a existência de bolsões onde essa lógica não se aplica como no caso de comunidades alternativas, camponesas, etc. – o projeto político anda lado a lado com o projeto econômico. Dessa forma a determinação da “ação” política – dá criação de leis, instituições, políticas públicas, execução de obras, etc. – passa pelo interesses econômicos. Dessa forma é importante percebermos que o sistema de trocas existentes numa sociedade tem como característica influenciar na produção política, cultural, científica, artística, etc. De forma simplificada, a maximização da produção científica nos últimos dois séculos não poderia ter ocorrido sem a ascensão do modelo capitalista de trocas.
Porém sabemos que o sistema anterior ao estabelecimento do capitalismo do ponto de vista político não favorecia a instalação do mesmo, já que sua estrutura estava construída sobre uma lógica que não privilegiava o aspecto individualista. Somente com o advento dos pensamento iluminista no século XVIII somado aos avanços técnicos obtidos pela “Revolução Inglesa” – aqui vale um paralelo de que desde o início do mesmo século a burguesia inglesa já havia se consolidado dentro da esfera política desde o fim da “Revolução Gloriosa” – que se tornou possível a substituição – inclusive violenta – do Antigo Regime pela ordem Burguesa.
A partir da “Revolução Francesa” de 1789 – mesmo sabendo de que a mesma ia ainda retroceder em alguns aspectos nos anos seguintes, para se consolidar apenas em 1830 na “Revolução Burguesa” – inaugurou-se uma nova forma de se pensar o mundo, onde o “ser”possibilitava e legitimava a lógica capitalista. A burguesia legitimou o individualismo através de uma nova forma de se pensar o mundo, a política, a natureza e a economia. Daquele momento em diante era o homem, mais precisamente sua razão que construiria e daria sentido ao mundo, o indivíduo teria seus direitos (liberdade, igualdade e propriedade privada) garantidos – em oposição ao poder absolutista.
Mas vale ressaltar que essa sociedade, assim como todas as precedentes, tinham como objetivo a manutenção do poder, as peças trocadas garantiam a ascensão de um novo grupo ao poder – ao lado de antigos membros da elite e do clero. Mas numa economia baseada nas relações de troca e no acúmulo de capitais, eram os burgueses quem detinham o poder quase que absoluto do cenário político. E o funcionamento do regime dependia – assim como outros – da desigualdade, pois essa era a responsável por gerar as “castas” existentes na sociedade que tinha como pilar central a noção de posse sobre os meios de produção.
Para aqueles que não tinham a posse da propriedade privada, restava apenas vender a sua força de trabalho e como esses existiam aos milhares, o salário e as condições poderiam ser – assim como ainda o são – as mais precárias, pois existiria sempre uma massa de trabalhadores cujo o 1 Xelim por dia era o suficiente para garantir sua sobrevivência.
Dessa forma, se estrutura a sociedade burguesa republicana, uma sociedade que precisa da desigualdade para manter-se e que exatamente por isso precisa articular concessões, benevolências, repressões, tradições, ritos, símbolos com as demandas materiais.
No Brasil a introdução do modelo capitalista se dá mais tarde, apenas no fim do século XIX – consolidando-se apenas em 1930 – de uma forma completamente adaptada a realidade colonial de nossos trópicos.
Não há como se pensar que a substituição de uma modelo de organização – político, econômico, filosófico, etc. – signifique a completa ruptura com o sistema anterior, permanências são sempre passíveis de serem identificadas – somente as “Revoluções” teriam como característica a ruptura completa com o passado. Logo, a introdução do capitalismo no Brasil conviveu com práticas remanescentes – tanto no plano prático quanto ideológico – do período colonial. Não havia uma burguesia no Brasil – pelo menos até a virada do século XIX -  mas havia liberais que ansiavam pela modernidade que o capitalismo oferecia, que ansiavam pelo futuro modernizante das ciências, das estradas de ferro, da cultura europeia.  Estes homens, inspirados na potência americana dos EUA e apoiados pelos setores militares positivistas encerraram no Brasil as práticas políticas oriundas dos tempos coloniais e instauraram em seu lugar uma república oligárquica.
A exploração da força de trabalho, também fora mudada, do escravo passou-se para a mão de obra livre, mas a herança do tratamento dado ao escravo permaneceu nas práticas de relação entre patrão e funcionário (principalmente nos campos, haja visto o processo de imigração). Empurrados para a periferia das cidades, obrigados a subserviência no campo, explorados, consumidos, tragados, a mão de obra brasileira sofreu. Apenas no governo de Vargas houve a criação de leis trabalhistas – essas criadas como forma de se controlar os operários, já que a mesma CLT não se aplicava aos trabalhadores do campo, inclusive vale lembrar que um fator relevante para o golpe de 1964 é vontade manifestada pelo então presidente João Goulart de realizar a reforma agrária. Além da exploração econômica a manutenção da “ordem” burguesa passa também pela exploração cultural e social, há nos grupos dominantes a necessidade de se reformular o imaginário social e pessoal visando se criar ritos, tradições e símbolos que através de preconceitos, estigmas, etc. garantam a manutenção do sistema.
Logo, a elite de um país tende a organizar uma série de ferramentas que vão da criação de uma história oficial, instituições, tradições, feriados, heróis nacionais, símbolos, inimigos, etc. para estruturar e tornar “pedagógico” a organização da estrutura social, varrendo para debaixo do tapete certos aspectos. Ao se relacionar a pobreza com a cor negra, nós esquecemos de um processo escravista que ao ser encerrado não ofereceu nenhuma dignidade aos ex-escravos, ofereceu somente a repressão e a exclusão, esse processo por sua vez foi responsável por consolidar a imagem do “preto” como pobre, consequentemente com tendências a marginalização. Talvez por isso algumas pessoas sintam um frio na espinha quando um “negro” caminha na sua direção na rua.
O preconceito – seja ele qual for – é então uma espécie de “estrutura de pensamento coletivo” que é perpassado socialmente através de várias manifestações e que estaria presente na composição de nossa cultura – sim temos uma cultura preconceituosa. Naturalizando-se assim as divergências na sociedade, pois vivemos ainda na lenda do “indivíduo que se faz”. Porém nessa conta, se esquece de levar em consideração o chamado “Capital Cultural” – o acesso à educação, cultura, oportunidades, os contatos sociais, etc. – que são completamente definidores em nossa sociedade. Basta pensar na importância de uma boa escola fundamental no processo de efetivação do sonho do ensino superior numa universidade federal.

Vivemos o resultado do processo de manutenção do capitalismo e consequentemente do domínio de uma elite liberal – isso não significa uma conspiração de homens brancos para controlar o passado, o presente e o futuro, pois como um processo, essa manutenção é construída gradativamente a partir das circunstâncias e interesses daquele momento histórico específico – que conta com a apropriação do Estado pela elite para efetivar seus interesses econômicos, gerando como refluxo uma sistema cultural modelado a partir das expectativas materiais.